Livro conta alguns dos maus momentos vividos pelas mulheres na luta contra a ditadura no Brasil

20/06/2010 12:34

"Livro revela as guerrilheiras brasileiras

por MÁRIO CÉSAR CARVALHO
AF

 

    Há um cadáver escondido no armário da esquerda. Foi um acidente, ao que tudo indica. Uma militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) aprendia a montar e desmontar um revólver quando, boom!, um tiro alvejou uma simpatizante do grupo guerrilheiro. O que fazer? Era 1968. Quase todos ali eram procurados pela polícia política. A decisão foi enterrar o corpo da garota em algum lugar da Grande São Paulo e mandar o viúvo, testemunha da morte acidental, para o exterior. O máximo que se sabe da vítima é que se chamava Beth. Os que sabem a sua identidade não falam. O tema é tabu e foi um dos segredos mais bem guardados da guerrilha.

    O cadáver escondido no armário da esquerda foi descoberto pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho, que o revela no livro "Mulheres Que Foram à Luta Armada". O livro é uma espécie de história da vida íntima da guerrilha brasileira. Por não comungar com o triunfalismo com que a esquerda costuma se auto-retratar, tornou-se uma coleção de tabus: revela a vida amorosa das guerrilheiras, a violência sexual dos torturadores, os inocentes que morreram nas ações, delações e justiçamentos (os que foram assassinados pela esquerda sob suspeita de traição).

    É com esses traumas que Carvalho tece a história das mulheres que pegaram em armas contra o regime militar (1964-1985).

    É uma história ciclotímica, uma montanha russa de euforia e massacre. As trajetórias de Dulce Maia de Souza e Renata Guerra de Andrade, as primeiras guerrilheiras da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), sintetizam esse sobe-desce. Dulce, jovem de classe média que fazia cursos de arte com Mário Pedrosa, amiga de Gilberto Gil e Jorge Mautner, teve vários ápices na guerrilha: estava com o grupo que matou o capitão norte-americano Charles Chandler, assaltou bancos e integrou o comando que jogou um carro-bomba contra o Quartel-General do 2º Exército, tudo em 1968. À época do atentado contra Chandler, ajudava a montar o filme "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla.

 

TORTURA - O inferno de Dulce foi a tortura após a prisão, em 1969. Pendurada de cabeça para baixo, levava choques na vagina enquanto um sargento berrava: "Você vai parir eletricidade".

    A história oficial da esquerda costuma acabar na sessão de tortura, mas Dulce rompe com o maniqueísmo que considera todo militar um crápula: "Havia sargentos maravilhosos", conta no livro.

    Dulce diz também que, sob tortura, revelou um encontro que teria com Marco Antônio Brás Carvalho. Com a informação, os militares mataram o guerrilheiro.Renata, a "terrorista loura", como era chamada nos anos 60 por causa da peruca que usava como disfarce, relata que ações ousadas, como o carro-bomba que matou o soldado Mário Kozel Filho no QG do 2º Exército, tinham motivações quase infantis.

    Segundo Renata, o atentado foi uma resposta a uma provocação do general Manoel Rodrigues Carvalho de Lisboa, comandante do 2º Exército.

    Dias antes de o carro-bomba explodir no QG, em junho de 1968, os guerrilheiros haviam assaltado um hospital militar em São Paulo. "Não houve heroísmo por parte do inimigo em entrar num hospital e roubar minhas armas. Agora, desafio que façam isso em meus quartéis", provocou o general. A VPR aceitou a provocação. "Depois a gente se autocriticou por ter feito isso, que não serviu para nada. A não ser matar o rapazinho", diz Renata, hoje editora-assistente da Enciclopédia Britânica do Brasil.

    Amores e afetos tiveram mais impacto sobre a vida dos guerrilheiros do que sugere a imagem pública da esquerda. O caso mais extremado foi o do guerrilheiro Cláudio de Souza Ribeiro.

    Em 1964, Ribeiro estava na assembléia dos marinheiros que funcionou como pretexto para o golpe militar de 31 de março. Em 1969, já militante da VPR, foi colocado na parede por Cleide Dall'Olio, com quem vivia: a guerrilha ou ela, eram as opções de Ribeiro. Ele escolheu Cleide, mesmo escalado para a guerrilha do Vale do Ribeira. Mudaram-se para o Recife, onde ele voltou à militância. Em 1971, Ribeiro descobriu que era traído e matou a mulher com três tiros. O que se conta é que logo em seguida apresentou-se à delegacia: "Acabei de matar minha mulher e sou um terrorista procurado", teria dito.

    Carlos Lamarca, líder guerrilheiro e amigo de Ribeiro, anotou no diário: "Só posso achar que Matos (codinome do marinheiro) enlouqueceu, a ponto mesmo de desejar se autoflagelar, e com o sofrimento justificar ter abandonado a Revolução".

    * No caso de Darci Rodrigues, ex-sargento da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária), era machismo mesmo, segundo a guerrilheira Sônia Lafoz.Rodrigues foi acusado de forçar uma relação sexual com a guerrilheira Carmen Jacomini. "Ela andava de calcinha e sutiã no aparelho. Eu cheguei pra ela e falei: "Ó, assim não dá. Nós estamos sozinhos aqui e não vai ficar assim"". Não ficou mesmo.

    Carmen sentiu-se violentada e encaminhou o caso à direção da VAR. A apuração não deu em nada. Hoje, Darci diz que a relação foi consentida. Sônia Lafoz e Vera Silvia Magalhães, a guerrilheira que ajudou a seqüestrar em 1969 o embaixador dos EUA, Charles Elbrick, e no filme "O Que É Isso, Companheiro" é desdobrada nos papéis representados por Fernanda Torres e Cláudia Abreu, são vozes solitárias a reclamar do machismo.

    Lúcia Murat, militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) à época e hoje cineasta (dirigiu "Doces Poderes"), tem uma visão diametralmente oposta a das duas, mas reconhece que sua feminilidade saiu arranhada da luta armada: "Eu era uma gatinha da zona sul do Rio. Era bem nascida. Eu nunca me senti tão livre na minha vida quanto em alguns momentos de clandestinidade. Na luta armada a gente perde um pouco a feminilidade: salto alto não combina com assalto", conta.

 

EMOTIVIDADE - Com o isolamento que os militares impuseram à guerrilha, as ações adquiriram conotações cada vez mais emotivas, segundo Sônia Lafoz. Foi assim com o seqüestro do embaixador da Alemanha, Ehrenfried von Hollene, em 1970. "Pesava muito libertar 40 companheiros. O lado afetivo, sentimental, teve um peso muito forte", diz a ex-guerrilheira da VPR e MR-8.

    Com a morte rondando a cada minuto, tudo era extremado. "Você se despedia de um companheiro num ponto e não sabia se ia voltar a vê-lo. Havia intensidade em cada momento", lembra Nancy Mangabeira Unger, guerrilheira do PCBR nos anos de chumbo e hoje professora de filosofia na Universidade Federal da Bahia. O isolamento da guerrilha não foi anunciado por nenhum dos líderes da esquerda, foi sentido na pele pelos guerrilheiros.

    Quando foi presa em dezembro de 1969, a militante da ALN Cida Costa teve um choque. "Uma mulher começou a gritar: "Morra, sua terrorista! Morra, sua terrorista!". Foi horrível. Você pensava que estava fazendo a coisa numa direção, mas essas mesmas pessoas pelas quais você assumia uma postura, o povo, o teu povo, não estava entendendo", diz no livro.

    Não há arrependimento entre as guerrilheiras. Criticam o despreparo militar da esquerda, o conhecimento esquálido da teoria marxista, mas não viam outra alternativa senão a luta armada.

    O único arrependido declarado é um torturador, o delegado de polícia Davi dos Santos Araújo. Em entrevista a Carvalho, ele diz o seguinte sobre a Oban (Operação Bandeirantes): "Se eu pudesse voltar no tempo, eu não teria entrado naquela casa". Sobre seus colegas de tortura: "Somos 300 desgraçados, 300 miseráveis. Fiz tudo certinho na polícia para ser um delegado de classe especial, para ser um diretor-geral, e o sistema não permite. Por que não permite? Porque você é torturador, porque você é malufista".

    As guerrilheiras, pelo menos, entenderam melhor a história do que o torturador arrependido." Fonte: https://www2.uol.com.br/JC/_1998/0305/br0305e.htm

 


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